segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

A Origem da Sereia

por Lyra M. Deméter

(é gente, Lyra M. de Lívia Garcia, que é como uma irmanzinha <3 e M. Deméter de eu mesma. =P Feliz Natal.)


O barulho na superfície continuava com o mesmo nível de irritação que sempre ocorria naquela época. Um zunzunzum sem fim que apenas humanos eram capazes de fazer e que causava uma desordem mesmo lá no início das profundezas do mar.
Jullie sabia muito bem que não deveria se aproximar daquela raça barulhenta e porcalhona, mas o barulho era tanto que a vontade de deixar-se roçar nas pernas de um ou nos pés de outro era praticamente incontrolável. Ora, ela tinha o direito de ferir ao menos aqueles que ousavam ir fundo demais e importunar seu habitat natural. Aquela era sua casa, não deles.
Ela entendia sem problemas que eles usassem o mar como fonte de diversão durante os dias de férias. Mas ora essa, era noite de Natal! Para os humanos, isso queria dizer ficar em suas casas, com suas famílias, não? Pois então, que fizessem isso e deixassem tanto ela como os outros seres marinhos em paz!

Stella olhava toda a cena com reprovação. Não concordava com a ação dos humanos, mas não concordava com Jullie também. Os humanos eram perigosos. O melhor a fazer seria deixá-los de lado e ir mais fundo no oceano, onde eles não seriam capazes de chegar, e ficar lá até que eles fossem embora.
E era exatamente isso que ela tentava fazer, afinal, era uma estrela-do-mar e o que estrelas-do-mar podem contra os destruidores humanos da natureza? Ela poderia ser pisoteada, chutada, arremessada, ou ainda pior, poderia ficar presa em alguma daquelas coisas brancas que mais pareciam redes sem furos para peixes.
Ainda assim, como poderia ir para a segurança do calmo fundo do mar e deixar sua amiga lá? Jullie era uma água-viva e conseguia se defender, mas suas defesas também poderiam ser a causa de sua morte.
Ela ponderou durante um bom tempo. No geral, mantinha-se longe de humanos e o mais longe possível da superfície. Se permanecesse muito tempo longe da água, morreria, e sabia disso. Mas Jullie não parecia com tanto medo, ou ao menos pensava que o risco valia à pena.
Por fim, decidiu se aproximar, apenas o suficiente. Convenceria Jullie a voltar consigo para o fundo do mar, onde esperariam até que tudo se acalmasse. Mas nada se acalmou, e ela nem mesmo teve a chance de chegar perto.
O zunzunzum de antes foi incrementado pelo barulho da queda, e a primeira coisa que Stella conseguiu visualizar foi uma massa loira que acreditava se chamar cabelo. Depois vieram os braços e pernas cumpridos se debatendo de um lado para o outro e causando reviravolta no mar, impedindo o avanço da estrela.
A água-viva desapareceu de sua visão por alguns segundos, enquanto seus braços mantinham seu equilíbrio no agitar do mar, impedindo-a de se afastar muito ou virar de pernas pro ar.

Jullie sentiu as ondas antes de ver a menina loira, mas isso não impediu que alguns dedos tocassem sua membrana por um instante, fazendo a humana se debater ainda mais. Por ela, a menina continuaria onde estava agora: abaixo da superfície, tentando desesperadamente subir e respirar.
Humanos não costumavam se importar com as criaturas do mar que eles, por vezes, matavam ou tiravam de seu lar para criar em ambientes artificiais. Por que, então, criaturas marinhas deveriam se importar com humanos?

Stella, mesmo que quisesse, não poderia levá-la para a superfície. Não tinha muito que pudesse fazer além de ficar ali e assisti-la se afogar. Entretanto, seu desejo era exatamente o contrário ao da água-viva, queria impedir que a humana se perdesse eternamente entre as correntes marítimas.
Talvez fosse exatamente por isso que ela era uma estrela inofensiva enquanto sua amiga era uma ardente água-viva, Jullie tinha o instinto predatório que Stella nunca teria, instinto esse que várias vezes já salvara sua vida, mas que várias outras a metera em grandes confusões.
Independente do que sua amiga pensasse, ela não deixaria que aquela menina morresse. Afinal, a garota não tinha culpa de pertencer à raça dos barulhentos quebradores de conchas.
Resolveu, então, avisar a Jullie o que resolvera fazer. Avisaria a eles. Era uma medida extrema, mas com ou sem o apoio da amiga sabia que era a única solução, não ficaria parada observando uma humana sofrer daquele jeito. Além do mais, aquilo já havia sido feito antes, qual o problema em fazer mais uma vez?
Concentrou-se em tentar se comunicar com Jullie. Não poderia avisar com palavras como os humanos faziam, é claro, era só uma estrela-do-mar, mas poderia avisá-la através de suas emoções, com uma espécie de imagem mental.
A resposta veio inicialmente em forma de desespero e inquietação, como esperado. A água-viva pouco se importava com vida e morte dos humanos. Mas mesmo ela aos poucos, com os argumentos apresentados por Stella, foi transmitindo um sentimento de compreensão e aceitação, afinal, do pouco que as duas ouviram falar deles, sabiam que salvavam apenas os merecedores de tal dádiva.

A garota loira aos poucos ia afundando, algumas bolhas cada vez mais raras escapando por seus lábios. Após decidirem contatá-los, estrela e água-viva precisavam agir rapidamente.
Jullie se prontificou a trazê-los com toda a força de seus pensamentos e distanciou-se um pouco da menina balançado seu corpo o mais rápido que podia. Não era possível que ouvissem com toda aquela agitação que a humana proporcionava.
Eles não demoraram muito. Se a garota podia ver alguma coisa debaixo d'água, então certamente achava que já estava perdendo o juízo. Tinham idades aparentemente diferentes, mas todos possuíam uma beleza incomparável. Desde as feições humanas extremamente belas até a ponta de suas barbatanas.
O grupo era composto por sereias e tritões, cada qual com escamas de cores diferentes, bem como seus cabelos e olhos. Eles avaliaram a situação por um momento, que parecia breve e ao mesmo tempo eterno. O tempo da humana estava acabando. Por fim, um sentimento de compaixão e bondade espalhou-se, e foi como se isso fosse o suficiente para acalmar tudo ao redor de todos eles.
Mesmo que a humana tivesse visto alguma coisa, já não importava mais. Logo ela deixaria sua humanidade para trás.
As sereias foram as primeiras no ritual, colocaram-se ao redor da garota quase inconsciente e, antes de darem as mãos, começaram a cantar. Os tritões seguiram os movimentos fazendo um circulo externo e mantendo os lábios fechados.
Stella e Jullie nunca tinham visto o processo antes e o canto as deixou maravilhadas. Não era como o som dos humanos. As vozes se propagavam na água com uma leveza aparentemente impossível e, apesar de não soarem completamente claras, a intenção era óbvia e palavras não eram necessárias.
Os tritões, por sua vez, mantinham uma base acústica ainda mais abafada, o timbre grosso soando por trás dos lábios fechados, apenas pelo tremor de suas cordas vocais.
Por fim, um dos tritões se aproximou, ficando no meio do círculo, junto com a garota loira. Não emitia qualquer tipo de som, mas seu olhar era concentrado. Ele fechou os olhos, e levantou a mão em direção a testa da menina. Tocou-a suavemente e da ponta de seus dedos saiu uma forte luz branca, que os envolveu.
Nem Stella nem Jullie sabiam se o brilho poderia ser visto pelos humanos da superfície, mas ambas duvidavam que eles reparassem, se fosse visível, ou que conseguissem enxergar alguma coisa, uma vez que a luz era muito forte; elas mesmas mal conseguiam ver o que se passava lá.
Aos poucos, o som do canto das sereias foi diminuindo, assim como o brilho. Quando tudo acabou, o oceano parecia estranhamente escuro. E, no centro da roda, não estava mais o tritão e a menina quase morta. Mas sim um tritão e uma sereia.
A ex-humana abriu os olhos voltando à consciência, soltou algumas bolhas de ar pela boca no que pareceu uma tosse ou quem sabe um sopro de vida preso à garganta.
Os humanos continuavam com o zunzunzum irritante de sempre, mas nem todos eram os porcalhões barulhentos quebradores de conchas. Talvez, ao contrário do que Jullie e Stella pensavam, os humanos não fossem vilões por completos, alguns ainda valiam à pena salvar, e certamente seriam salvos.
Como aquela menina. Afinal, se ela fosse tudo aquilo, ela teria deixado de existir durante a transformação, pois ao contrário do que diz a lenda, sereias nunca são cruéis.


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